A Noite de São Nicolau
Cientistas reconstroem o rosto do Bispo São Nicolau |
Bem no começo de dezembro, quando o vento sopra mais forte fazendo com que caiam as folhas das árvores, em todos os lugares da Holanda sente-se um clima de expectativa, pois esta é a época de são Nicolau. Os comerciantes preparam as mais atraentes vitrines, as ruas vibram de animação, e dentro das casas a já célebre hospitalidade holandesa chega a seu ponto máximo durante os serões, com toda a família reunida ao redor da lareira, ocupada com a preparação do grande dia que está para chegar.
Cenas da vida de são Nicolau num vitral da catedral de Bourges, na França.
É difícil encontrar outro país no mundo onde o dia de são Nicolau seja celebrado com tanto entusiasmo. Em meados de novembro, o sagrado bispo que vem da Espanha já perambula pelas ruas da Holanda, sempre acompanhado de um criado negro e, desnecessário dizer, de um bando de crianças. Quanto mais se aproxima seu dia, mais freqüentemente o santo é visto nas ruas. Na véspera e na festa propriamente dita (6 de dezembro), todas as grandes lojas e restaurantes exibem seu próprio são Nicolau - "Sinterklaas" como é chamado na Holanda. Como resultado, não é raro que dois santos se encontrem em plena rua, para espanto da criançada, e às vezes até mesmo se interpelem. Afinal, são Nicolau não pode ser bondoso o tempo todo: e por que não deveria um só ficar com todas as glórias profissionais?
A noite de são Nicolau é, em princípio, um festival para crianças (embora as más línguas digam que é mais uma grande festa para os lojistas e fabricantes de brinquedos), e no decorrer de novembro os jovens já se levantam cedo com menos desprazer. Até os mais endiabrados juntam-se com fervorosa devoção em frente à lareira (pois o santo sempre entra pela chaminé à noite) e cantam a tradicional canção "São Nicolau, bom, santo homem" com receio de que não tenham grandes créditos junto ao bispo e sejam postos no grande saco, carregado pelo Negro Pedro (Zwarte Piet) seu criado, infalivelmente vestido com roupas do século XVII e dado a excêntricas travessuras. Com seus olhos redondos e escuros, o Negro Pedro é uma figura apavorante para os pequenos, especialmente porque sabem que ele costuma levar consigo, para a Espanha, todos pequenos travessos.
Antes da visita às escolas e casas onde há crianças para lhes dar presentes, na noite de 5 para 6 de dezembro, são Nicolau faz sempre uma entrada solene em cidades e vilas; às vezes há uma recepção oficial programada pelas autoridades municipais. Na ocasião, ele percorre as ruas num desfile triunfal, espalhando biscoitos de especiarias e nozes aos punhados entre as crianças que se aglomeram nas calçadas. À noite ele também coloca uma surpresa dentro do sapatinho de cada uma delas, em troca do feno e da aveia que tenham deixado junto à lareira para seu cavalo - a menos que tenha descoberto alguma travessura passada, durante sua cavalgada de inspeção por sobre os telhados.
A Noite de são Nicolau
Mas não apenas as crianças se divertem na noite de são Nicolau; os adultos também fazem uma festa. À noite as famílias se juntam e todos trazem seus pacotes; enquanto tomam chocolate quente, os presentes vão sendo distribuídos em nome de Sinterklaas. Cada lembrança é acompanhada de uma poesia na qual é feita referência aos pontos fracos do presenteado (ou possivelmente a suas boas qualidades) mas tudo escrito de maneira bem jocosa.
São Nicolau ocupou sempre um lugar muito importante nos corações do povo de Amsterdam. Na verdade, foi escolhido como padroeiro daquele grande porto devido a uma lenda do século VI, quando consta que acalmou as ondas e restituiu a vida a um marinheiro, após um naufrágio.
Perto da Estação Central, em Amsterdam, há uma igreja chamada St. Nicolaaskerk, dedicada ao bispo de Mira, e numa das casas da praça do Dam uma escultura ilustra um dos numerosos milagres atribuídos ao santo. O alto relevo mostra três crianças dentro de um barril; conta a lenda que elas foram ali colocadas pelo malvado dono de uma estalagem que as transformou em recheio de pastel. Mas ressuscitaram graças a São Nicolau.
São Nicolau é também personagem importante para os habitantes de Ameland, ilha da Frísia famosa por sua beleza natural intacta. Neste caso entretanto, a causa da notoriedade é um tanto diferente. Assim que a tarde cai, em 5 de dezembro, o pessoal de Ameland se disfarça sob lençóis brancos e percorre a ilha à cata de mulheres; durante todo o tempo eles tocam uma espécie de corneta. O intuito é prevenir as mulheres de que, neste dia especial, estão proibidas de sair à rua entre 5 e 7 da tarde. Se alguma delas for vista perambulando dentro deste horário, será perseguida através da vila por aparições fantasmagóricas armadas de varas flexíveis, e será por fim lançada ao lago.
Depois da ceia, os homens procuram as moças de Ameland nas estalagens. Grupos de mascarados as rodeiam e forçam a pular por sobre varas estendidas no chão, ao som das cornetas, e algo infeliz poderá acontecer àquela que for ousada bastante para recusar-se à brincadeira.
Este predomínio masculino só termina à meia-noite quando então os disfarces são colocados de lado, ouve-se música por todos os cantos, a dança começa, e as mulheres voltam a ter tudo à moda delas por mais um ano.
Como surgiram as festividades de são Nicolau e qual sua origem? Em muitas terras é costume as pessoas fazerem agradáveis surpresas umas às outras, pela troca de presentes num dia particular, geralmente durante os meses de inverno. Essa troca de presentes ocorre de maneira secreta, ou pelo menos misteriosa. Assim sendo, o doador permanece anônimo. Em certos países isto ocorre no final do ano, quando todo o mundo celebra o Natal. Mas na Holanda os presentes são trocados na véspera da festa de são Nicolau, ou seja na noite de 5 de dezembro.
A prática de oferecer presente é provavelmente um costume invernal antigo, remanescente das tribos bárbaras germânicas que costumavam oferecer sacrifícios a Wodam, deus do vento, para que propiciasse fertilidade.
Várias crenças tradicionais de origem bárbara estão igualmente associadas às festividades de são Nicolau; por exemplo, o hábito do santo de cavalgar nas asas do vento (por sobre os telhados) e jogar presentes pelas chaminés; o costume de oferecer feno e aveia a um cavalo fantasma, junto às lareiras etc. A popularidade do Bispo de Mira na Holanda decorre provavelmente do fato de são Nicolau ser o patrono dos marinheiros; nada mais natural que ele seja colocado em lugar de honra numa nação de navegantes.
São Nicolau é considerado habitante de Mira, na Ásia Menor (Turquia) onde, no século IV, ficou famoso como bispo por sua gentileza e generosidade. Mas só seis séculos após sua morte é que se tornou realmente conhecido no mundo ocidental. Isso aconteceu no ano de 1087 quando alguns mercadores transferiram seus restos mortais de Mira (então ocupada pelos Sarracenos) para a cidade de Bari, no sul da Itália. Foi então descoberto que seu esqueleto exsudava um óleo com poderes curativos milagrosos; e assim a fama do santo espalhou-se rapidamente e o porto de Bari transformou-se em local de peregrinação.
Embora são Nicolau não tenha nenhuma ligação histórica com a península ibérica, na Holanda diz-se que ele desembarca anualmente vindo da Espanha. A explicação disto pode ser encontrada no século XVI, quando os mercadores holandeses voltavam de suas viagens àquele país carregados de tesouros de várias espécies e por isso a Espanha era considerada um Eldorado. De lá viriam os presentes da noite de são Nicolau, a primeira e mais importante festa infantil - esta conotação gerada sem dúvida pela lenda das três crianças salvas pelo santo.
Fonte: In: Revista Crônicas da Holanda. Publicação do Departamento Cultural e de Imprensa do consulado-geral dos Países Baixos do Rio de Janeiro, nº 107, 1988, pp.24-25.
0 Comentários